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`TROTE UNIVERSITÁRIO NÃO É TRADIÇÃO, É RELAÇÃO DE PODER`, DIZ ESPECIALISTA

VANESSA FAJARDO - G1 GLOBO.COM - 24/03/2013 - RIO DE JANEIRO, RJ

Apesar das instituições de ensino superior incentivarem ações de entretenimento, humanitárias ou pedagógicas para receber novos alunos, caso de trotes abusivos carregados de preconceito ou violência continuam sendo registrados em todo o país nesta época do ano. Muitas práticas se repetem sob alegação de que são tradicionais e fazem parte da história de determinadas faculdades. Estudiosos do trote universitário ouvidos pelo G1 afirmam que é preciso acabar com esta prática.

“Não tem nada a ver com tradição, a questão do trote é relação de poder. Um grupo político disputa o controle da situação. O menino que vai para a rua pedir dinheiro [nas brincadeiras de pedágio] é o soldado raso em uma hierarquia que tem general”, afirma Antônio Ribeiro de Almeida Júnior, professor do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura (Esalq). O especialista é autor de três livros e estuda o tema desde 2001. `Ao longo do ano vejo o aumento da violência, e não da consciência.`

Vários episódios de violência física ou psicológica foram registrados nas últimas semanas. Em Minas Gerais, uma caloura foi fotografada pintada de preto com as mãos acorrentadas e uma placa de identificação com o nome `Chica da Silva.` No Rio Grande do Sul, os `bixos` tiveram de segurar uma cabeça de porco e tomaram um banho com líquido que continha vísceras de peixe.

As atléticas e centro acadêmicos das universidades costumam rebater as críticas dizendo que as atividades são ações isoladas, ocorrem independentemente das instituições e a participação dos estudantes é voluntária. Muitas instituições até disponibilizam telefones que funcionam como `disque trote` para denunciar casos de coação e constrangimento.

O último livro de Almeida Júnior sobre o tema foi, na verdade, sua tese de livre docência chamada de “Anatomia do Trote Universitário”. Para o trabalho, ele ouviu relatos de mais de 400 alunos e teve acesso a mais de 2.000 questionários. O especialista diz que o trote não é um ritual de integração, pois reúne no máximo 20% dos alunos, por isso o receio que os novos estudantes têm de que ficarão excluídos, caso não participem das atividades, é uma bobagem.

“Quando você conhece alguém novo, não precisa pintá-lo para receber na sua casa. A ideia de alegria do trote é falsa, é um processo de exclusão. É um teste, por isso precisa ser violento”, diz o professor.

O especialista vê como problemática até mesmo a prática do corte do cabelo dos meninos, que é aceita pela maioria dos alunos. “Conheço relatos de casos de agressão que ocorrem durante o corte. 80% dos alunos que participam do trote dizem que passaram por pelo menos alguma coisa de que não gostaram ou se ofenderam.”

Almeida Júnior é formado em engenharia agronômica pela Esalq e diz que ele cortou o próprio cabelo quando passou no vestibular. “O trote é processo progressivo, ninguém espanta o outro num primeiro contato. Ocorre um processo crescente, primeiro a pessoa corta seu cabelo, depois manda você se ajoelhar e no final se não obedecê-la, te bate.”

Bullying na universidade

`Se discute muito o bullying no ensino médio, mas o trote é o fenômeno que sustenta o bullying na universidade. Quando um brinca e outro se sente mal, não é mais brincadeira. O sistema é enraizado como rito de passagem, mas não é porque os alunos nunca se igualam, são reprimidos pelos que estão um ano na frente`, afirma a socióloga e professora de saúde coletiva da Faculdade de Medicina do ABC, Silmara Conchão.

Ao lado dos professores Marco Akerman, Roberta Cristina Boaretto e um grupo de 13 alunos, Silmara lançou o livro “Bulindo com a universidade: um estudo sobre o trote na Medicina`, em novembro do ano passado. A publicação traz depoimentos de alunos do 2º ao 5º ano da Faculdade de Medicina do ABC que sofreram com trotes.

`O livro descortina uma realidade muito velada. Hoje a recepção [na Faculdade de Medicina do ABC] tem caráter de acolhimento. Mas ainda vai levar anos para desorganizar esta cultura do trote, pois há pressão e discriminação com aquele que não participa.`

`Inibição total`

O presidente da comissão contra o trote violento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Fábio Romeu Canton Filho, afirma que a fundamentação de que o trote é uma tradição ou rito de passagem é muito frágil. `Uma única morte em uma universidade é suficiente para justificar a inibição total. A preservação da vida humana tem de ser o mote.` Canton Filho se refere a Edison Tsung-Chi Hsueh, aprovado no curso de medicina da Universidade de São Paulo (USP), em 1999, que morreu afogado em uma piscina durante o trote. Ele tinha 22 anos. Desde então os novos alunos da medicina da USP são recebidos com palestras, tour pelo campus e ações educativas que também envolvem os pais.

`É muito mais saudável fazer uma festa com os diretórios acadêmicos que sabem realizar recepções e integrações. O pensamento de `vamos manter a tradição` está atrasado`, afirma o advogado. Segundo ele, muitos casos de trotes podem ser alvo de ações de natureza civil e até criminal, previstos pela legislação brasileira.

Trote solidário

Nem mesmo os trotes solidários são consenso entre os especialistas. Canton admite ações que preveem trabalho voluntário, arrecadação de alimentação e tenham outros fins sociais, desde que tenham aceitação do estudante. Almeida Júnior afirma que se a atividade tiver a denominação `trote` é problemática, até mesmo as que se propõem fazer atividades solidárias. `É preciso desconectar as ações das palavras `trote`, `calouro` e `veterano`. O papel social da universidade não é a distribuição de cesta básica, é produzir pesquisa, conhecimento e estender isso para que a comunidade receba o produto do investimento.`

O fim dos trotes depende de ações mais enérgicas das universidades, segundo o professor. Almeida Júnior, no entanto, não vê vontade das instituições. `As universidades não estão interessadas em resolver a questão e disfarçam propondo trotes solidários e culturais. Existe muita maquiagem. Se a universidade quiser, tem poder e instrumentos para acabar com o trote.`

 

 


TROTE, UMA PRÁTICA MEDIEVAL QUE DESAFIA AS UNIVERSIDADES

As primeiras universidades surgiram na Europa em plena Idade Média. Foram um sopro de liberdade. Permitiram progressivamente ao homem atuar segundo a razão, em vez de apenas obedecer a dogmas. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que nasciam os centros de estudo, surgia uma instituição muito mais tributária da ideia que hoje fazemos da “Idade das Trevas”: o trote. Os primeiros registros da prática datam do início do século XIV. Calouros da região correspondente à moderna Alemanha eram obrigados a andar nus e ingerir fezes de animais mediante a promessa de que poderiam se vingar nos novatos do ano seguinte. “Os alunos veteranos descontavam nos mais novos a repressão promovida em sala de aula por professores rigorosos”, afirma Antônio Zuin, professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e autor do livro O Trote na Universidade: Passagens de um Rito de Iniciação.

 

Linha do tempo: os trotes violentos no Brasil, de 1831 a 2011

 

O trote é uma demonstração de que, a despeito de avanços inegáveis, o mundo não mudou tanto assim em quase 800 anos. Mantém no século XXI um tanto de século XIV. Prova disso é que o trote se mantém no calendário como uma atividade acadêmica regular: encerrada a fase de vestibulares, se inicia a de divulgação de listas de candidatos aprovados e explode a agressão e a humilhação dos novatos. Neste ano, por exemplo, uma tropa de veteranos da Universidade de Brasília (UnB) exibiu sua porção medieval ao obrigar calouras a simular sexo oral com uma linguiça envolta numa camisinha e embebida em leite condensado. Americanos e franceses, entre outros, também tem motivos para lamentar. Lá, como aqui, o trote persiste, preocupa e escapa do controle.

No centro do problema, estão as próprias universidades. A maioria das instituições proíbe o trote dentro de suas dependências – algumas já o fazem há cerca de 40 anos. Contudo, em geral, a fiscalização não é rigorosa, e as atividades envolvendo veteranos e calouros muitas vezes acontecem do lado de fora dos muros acadêmicos. “A universidade ainda não vê como sua tarefa coibir o trote”, diz Antonio Ribeiro de Almeida Júnior, professor de sociologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) e autor do livro Universidade, Preconceito e Trote. “A proibição por si só não funciona. É preciso punir aqueles que desrespeitam a norma. O problema é que normalmente as universidades se restringem a abrir inquéritos, mas ninguém é punido”, afirma.

 

Mostrar aos algozes a face dura da lei foi a escolha da França. Desde 1998, está em vigor no país uma lei que criminaliza o trote violento. Os condenados podem pegar um ano de prisão e pagar multa de até 15.000 euros. Desde que o mecanismo entrou em vigor, os veteranos passaram a se comportar melhor, apontam estudos locais. As práticas humilhantes e violentas foram substituídas por uma jornada de integração dos novos alunos à instituição. Estudante de psicologia da École des Psychologues Praticiens, de Paris, Maria Elisa Serra passou pela experiência. “Foram promovidas festas, gincanas e atividades dentro da universidade. Foram dois dias divertidos e saudáveis”, diz a brasileira. Alguma semelhança com a tradicional baderna por que passaram seus colegas no Brasil? “Nenhuma”, ela responde.

 

Trote camarada – Algumas instituições brasileiras têm se esforçado para melhorar as estatísticas sobre trotes – que são escassas, diga-se, pois o medo dos novatos inibe reclamações e o problema só costuma vir à tona quando ocorrem mortes ou ferimentos graves. Há dois anos a UnB criou, em parceria com os diretórios de estudantes, um “programa de boas-vindas aos calouros” nos moldes franceses. Alguns resultados são animadores. No curso de agronomia, a parcela de vítimas de trotes caiu de 75% para 50%. Contudo, o episódio da linguiça encapada por camisinha, ocorrido na mesma unidade da universidade, segue como alerta de que ainda há muito o que fazer. A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) tenta iniciativas semelhantes para afastar o trote violento. “Conversamos com os diretórios acadêmicos para coibir esse tipo de ação. Em paralelo, desenvolvemos atividades em parceria com os alunos veteranos para receber os novos estudantes. Nos últimos quatro anos, não registramos nenhuma ocorrência relacionada aos calouros”, afirma Luiz Leduino de Salles Neto, pró-reitor de assuntos estudantis da Unifesp.

Os legisladores brasileiros ainda discutem o que fazer para enfrentar o problema que, por aqui, já tem quase dois séculos – o trote chegou ao país trazido por brasileiros que haviam estudado na Europa no século XIX. Um projeto de lei que pretende disciplinar o assunto foi aprovado na Câmara em 2009 e, desde então, repousa no Senado. Pretende proibir o constrangimento dos calouros, a exposição deles a situações vexatórias e ofensas graves, além de garantir a integridade física dos novatos. O texto determina que as universidades abram processos disciplinares contra os veteranos violentos, mas não prevê sanções a instituições que se furtarem a cumprir suas responsabilidades. Aos alunos que se excederem, seriam aplicadas multas – de 1.000 a 20.000 reais –, suspensão de um a seis meses e até expulsão. Desde 1999, alguns estados mantêm leis locais que tratam do tema, caso de São Paulo e Santa Catarina. No entanto, passada mais de uma década, não há registros de condenações motivadas por esses freios legais.

Os Estados Unidos também tentam minorar o problema pela via legal – e têm falhado igualmente. Em 44 estados, o trote já é considerado crime. Contudo, 29 estudantes morreram vítimas de trotes violentos na última década, cinco deles só em 2008, segundo levantamento de Hank Nuwer, professor do Franklin College e estudioso do assunto. “As leis e os programas das universidades que tentam promover atividades alternativas ainda são ineficientes. É difícil combater uma prática que, até a metade do século passado, era amplamente incentivada pelas próprias instituições de ensino”, diz Nuwer.

Entre os americanos, em geral, violência e humilhação não são impostos cobrados às portas da instituição. Lá, os maiores problemas são registrados durante a seleção promovida por veteranos para escolher os novatos que serão aceitos pelas fraternidades (somente de homens) e irmandades (de mulheres). Ambos são grupos fechados que alegam selecionar os melhores e, posteriormente, beneficiá-los de alguma forma, como oferecendo conexões sociais privilegiadas ou acesso a oportunidades de emprego. A possibilidade de se tornar um líder no meio universitário – e fora dele – anima os jovens a encarar provas arriscadas para fazer parte dos grupos. “O maior problema ali é relativo ao abuso de bebida alcoólica, além de brincadeiras aparentemente inocentes, como levar um candidato a uma área rural ou a um bairro extremamente perigoso em plena madrugada e deixá-lo ali sozinho, à própria sorte”, conta o especialista americano.

Como ocorria há quase 800 anos, o ingresso de um calouro na universidade pode de fato configurar um ponto de inflexão na vida desse jovem. É quando uma porta se abre à sua frente. Fazem sentido, por isso, festas e cerimônias. “O momento pede um ritual que marque a transição. O calouro precisa ser iniciado no meio acadêmico e os veteranos precisam cumprir esse papel”, afirma o professor Antônio Zuin, da UFSCar. Está claro, contudo, que, em pleno século XXI, esse ritual não pode reproduzir a face obscura do século XIV.

Por Nathalia GoulartVeja Online (11.fev.2011)